quinta-feira, 4 de junho de 2009

Paulo Cal : "Walter...A sua imagem e semelhança"

A fim de evitar seis dias de trabalho, Deus, como descrito no Gênesis, poderia deixar céus, terra, luz, mar, Adão e Eva para depois. Bastava Ele criar no princípio, o professor, ator, cantor, locutor, pintor Walter Bandeira, que vários mundos iriam surgir antes do sétimo dia de descanso. No fim, Deus, pode ter certeza, veria que criar o Walter no princípio era bom.

Hoje, de retorno aos braços do criador,este deve tê-lo recebido orgulhoso.A vida de Walter Bandeira tem paralelos com a própria criação bíblica. Fez de tudo em vida. Amou, foi amado, trabalhou em quase tudo, teve muitos amigos. Viveu com intensidade numa única cidade. Belém era seu tudo. Seu palco de vida, a sua adorável criança. Para ele, Belém é como a velha Paris na amazônia. Uma cidade estreita, insalubre, carente – mas pitoresca, charmosa, plena de recordações. Para ele sair para um passeio pela cidade não era algo fatigante, era uma delícia. Sua calçada eterna era a praça da república com suas mangueiras, bancos, quiosques e seus teatros.

Na medida que envelhecia, resmungava que a cidade estava crescendo demais. A cidade estava ficando incompreensível de tão grande. Na medida em que a cidade crescia, empobrecia de tudo e só poderia ser decifrada subitamente e com dificuldade por um profeta bêbado e genial em busca de pequenos milagres.

Apesar de trabalhar muito, o Walter era um “flâneur” que por definição é um ser dotado de imensa ociosidade e que pode dispor de uma tarde ou noite para zanzar sem direção, visto que um objetivo específico ou um estrito relacionamento do tempo constituem a antítese mesma do flâneur. Para ele, uma incursão na paisagem urbana nunca deveria ter direção nem propósito, numa rendição passiva ao fluxo aleatório de suas surpreendentes e inumeráveis ruas, praças e avenidas.

Conheci o Walter no início dos anos 60 e nossa amizade se consolidou nos tempos da faculdade. Arquitetura e Teatro foram criadas pela Ufpa no mesmo ano (63/64) juntamente com Administração e Biblioteconomia. Nós da arquitetura fizemos diversas parcerias com o pessoal de teatro. Encenamos peças onde projetávamos e confeccionávamos o palco, realizamos diversas leituras dramáticas de peças de vanguarda e conferências que relacionavam sempre arquitetura e teatro.

A última vez que vi o Walter vivo foi na vinharia S’Il Vous Plaît onde apareceu de repente, me beijou como sempre fazia, sentou, olhou em torno da mesa e disse mais ou menos isto: “Sabes Cal, a carne me aborrece agora. Um corpo de mulher não me desperta mais do que uma vaga sensação de lástima. Há qualquer coisa fora de lugar, qualquer coisa de patético num corpo, na forma pela qual ele nos olha ou se deixa ser olhado: o umbigo e os mamilos que nunca se vê, o corpo inteiro da mulher guardam certa expressão de olhos que nos fitam. Percebes o que eu quero dizer?”

Acho que já sabia que estava doente gravemente (foi mais ou menos 15 dias antes de sua morte). Recordo-me destas palavras, recordo que elas me causaram uma profunda impressão. Senti que qualquer coisa extraordinária estava na iminência de se dar. E, tão logo acabou de pronunciá-las, meu amigo Walter Bandeira correu os olhos em redor da sala com uma expressão de quem está se despedindo, uma centena de adeuses a todas essas coisas aparentemente sem importância, mesas, cadeiras, copos de vinho pelo meio; mas, nem uma única vez em direção a mim ... Correu os olhos de adeus em torno da sala, beijou-me e, antes que pudéssemos perceber que estava realmente se despedindo das coisas, pôs-se de pé, saiu andando e varou pela porta, rua adentro.

Adeus velho amigo. Dá um abraço no Chembra e, em breve nos reencontraremos, não sei onde, nem quando. Adeus...

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