sexta-feira, 8 de junho de 2012

Marisa Mokarzel > escreveu sobre o livro "Cidade Velha" de Ronaldo Franco:


"Como uma narrativa entrecortada por ágeis cenas que se sobrepõem em uma memória de livres cronografias, Ronaldo Franco dispõe o seu olhar sobre a Cidade Velha, percorrendo-a em íntimos inventários.

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São detalhes, histórias acontecidas, imaginadas, pinçadas de igrejas e casarões, transcorridas nas ruas estreitas, sob a luz de lamparinas.

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"Quais gavetas entulhavam ausências e traições de alfazema?" Qual mantilha oculta os mistérios do verbo? Leitora, espectadora, cerco-me de flores azuis, me deixo perfumar pelas poéticas imagens molhadas de chuva, tecidas pela alma delicada do poeta. De lua em lua redescubro Belém.

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Mais familiarizada com as artes visuais encanto-me com as palavras imagens, procuro os líquidos que "secaram na sede dos anos". Bebo das fontes inimagináveis que o poeta dispõe na paisagem suspensa na memória. Folheio os álbuns de madrepérola e adivinho os personagens desfocados sob a poeira do papel.

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Indumentárias antigas se ressentem do ritmo da vestes mais recentes, mas no descompasso dos anos, se permitem diferentes histórias, intensamente vividas, reescritas na cartografia do tempo.

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Assim o mágico da palavra me permite que imagens roubadas se sobreponham e me remetam a outras ficções. Quase acredito que nesse cenário poético Ismael Nery ressurge em uma esquina qualquer e desfaz o mal-entendido de muito tempo atrás. Talvez ao lado de irmã Verônica ou de Adalgisa, tenha entrado na primeira igreja e percebido que "os Cristos mortos eram escoltados por tristeza mortal" : sua própria tristeza, a de quem sua arte não se fez entender.

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No silêncio das velas, o pintor depositou sua certidão de nascimento, lavrada nos idos de outubro de 1900.

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São tantas as cidades que a Cidade Velha abriga, são tantos os rumores, os amores que as tramas se refazem a cada desassossego, compondo o som das catedrais. Prédios e sentimentos, redesenhados em finas linhas, deixam-se cravar nas ceras esquecidas por orações.

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Do artista vêm as elegias, os espinhos tirados da dor.

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Em qual sobrado Acácio se esconde?

De onde seus olhos retiram poemas?

De qual louça portuguesa conta a sua história?

Ele que ali não mora, mas lá está, na cidade imaginada pelo poeta, na palavras tecidas nos becos, expandidas pelos portos que invadem os rios.

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"Quanto novelos de linha para costurar mentiras?"

Quantas verdades ambíguas, alegres ou sombrias, desvelam-se em irônicas cerziduras.

Ronaldo Franco é o testemunho ocular de um passado presente que se refaz a cada momento.

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Como poeta vê além do que está escrito. E como encantador de palavras permite que o imaginado, dele revelado, o outro se aproprie. E, mais uma vez imagino a topografia, os relevos, as nuanças dos paralelepípedos, as marcas dos pés que se tornam invisíveis pelos novos passos que sobre eles repousam.

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As andanças pelas ruas de histórias ainda não terminaram, uma pergunta ronda portas e janelas, escapa pelas passagens estreitas.

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Entre os moradores, um eco atravessa as casas e pode-se ouvir: "quantas inquietudes sob lâmpadas fracas?" "Quantos olhares ali escolheram repor suas lembranças, dispor suas vidas.

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Sol e lua iluminam os que ali elegeram viver. Rua de Mariano, Chikaoka, Walda Marques, Paula Sampaio. Coincidências ou escolhas? Somente a paisagem selecionada, impressa em luz.

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Há muito percursos de espelhos guardados em caixa preta, traduzidos em paixão pela Cidade Velha, pelas cidades da Cidade Velha.

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Fixo meu olhar no vazio do azulejo que ali não mais está.

Penso comigo mesma: "Ó tempo veloz: a vida no cerol se cortando", deixando rastros de luz. Mais uma vez pela voz do poeta a cidade se permite redesenhar a cada palavra.

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Como "uma incessante lua" renova-se a todo instante.

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Ronaldo Franco tal qual um maestro rege a música inaudível proveniente das minúcias de uma Cidade velha imaginada, que muito mais que um patrimônio histórico, se fez poesia.

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* Marisa Mokarzel

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