sábado, 24 de maio de 2008

O Mito.

Sequer conheço Fulana,
vejo Fulana tão curto,
Fulana jamais me vê,
mas como eu amo Fulana.
.
Amarei mesmo Fulana?
ou é ilusão de sexo?
Talvez a linha do busto,
da perna, talvez o ombro.
.
Amo Fulana tão forte,
amo Fulana tão dor,
que todo me despedaço
e choro, menino, choro.
.
Mas Fulana vai se rindo...
Vejam Fulana dançando.
No esporte ela está sozinha.
No bar, quão acompanhada.
.
E Fulana diz mistérios,
diz marxismo, rimmel, gás.
Fulana me bombardeia,
no entanto sequer me vê.
.
E sequer nos compreendemos.
É dama de alta fidúcia,
tem latifúndios, iates,
sustenta cinco mil pobres.
.
Menos eu...que de orgulhoso
me basto pensando nela.
Pensando com unha, plasma,
fúria, gilete, desânimo.
.
Amor tão disparatado.
Desbaratado é que é...
Nunca a sentei no meu colo
nem vi pela fechadura.
.
Mas eu sei quanto me custa
manter esse gelo digno,
essa indiferença gaia
e não gritar: Vem, Fulana!
.
Como deixar de invadir
sua casa de mil fechos
e sua veste arrancando
mostrá-la depois ao povo
.
tal como é ou deve ser:
branca, intata, neutra, rara,
feita pedra translúcida,
de ausência e ruivos ornatos.
.
Mas como será Fulana,
digamos, no seu banheiro?
Só de pensar em seu corpo
o meu se punge...Pois sim.
.
Porque preciso do corpo
para mendigar Fulana,
rogar-lhe que pise em mim.
Que maltrate...Assim não.
.
Mas Fulana será gente?
Estará somente em ópera?
Será figura de livro?
Será bicho? Saberei?
.
Não saberei? Só pegando,
pedindo: Dona, desculpe...
O seu vestido esconde algo?
tem coxas reais? cintura?
.
Fulana às vezes existe
demais: até me apavora.
Vou sozinho pela rua,
eis que Fulana me roça.
.
Olho: não tem mais Fulana.
Povo se rindo de mim.
(Na curva do seu sapato
o calcanhar rosa e puro.)
.
E eu insonte, pervagando,
em ruas de peixe e lágrima.
Aos operários: A vistes?
Não, dizem os operários.
.
Aos boiadeiros: A vistes?
Dizem não os boiadeiros.
Acaso a vistes, doutores?
Mas eles respondem: Não.
.
Pois é possível? pergunto
aos jornais: todos calados.
Não sabemos se Fulana
passou. De nada sabemos.
.
E são onze horas da noite,
são onze rodas de chope,
onze vezes dei a volta
de minha sede: e Fulana
.
talvez dance no cassino
ou, e será mais provável,
talvez beije no Leblon,
talvez se banhe na Cólquida;
.
talvez se pinte no espelho
do táxi; talvez aplauda
certa peça miserável
num teatro barroco e louco;
.
talvez cruze a perna e beba.
talvez corte figurinhas,
talvez fume de piteira,
talvez ria, talvez minta.
.
Esse insuportável riso
de Fulana de mil dentes
(anúncio de dentifrício)
é faca me escavacando.
.
Me ponho a correr na praia.
Venha o mar! Venham cações!
Que o farol me denuncie!
Que a fortaleza me ataque!
.
Quero morrer sufocado,
quero das mortes a hedionda,
quero voltar repelido
pela salsugem do largo,
.
já sem cabeça e sem perna
à porta do apartamento
para feder: de propósito
somente para Fulana.
.
E fulana apelará
para os frascos de perfume.
Abre-os todos: mas de todos
eu salto, e ofendo, e sujo.
.
E Fulana correrá
( nem se cobriu: vai chispando),
talvez se atire lá do alto.
Seu grito é:socorro! e deus.
.
Mas não quero nada disso.
Para que chatear Fulana?
Pancada na sua nuca
na minha é que vai doer.
.
E daí não sou criança.
Fulana estuda o meu rosto.
Coitado: de raça branca.
Tadinho: tinha gravata.
.
Já morto, me quererá?
Esconjuro, se é necrófila...
Fulana é vida, ama as flores,
as artérias e as debêntures.
.
Sei que jamais me perdoará
matar-me para servi-la.
Fulana quer homens fortes,
couraçados, invasores.
.
Fulana é toda dinâmica,
tem um motor na barriga.
Suas unhas são elétricas,
seus beijos refrigerados,
.
desinfetados, gravados
em máquina multilite.
Fulana, como é sadia!
Os enfermos são nós.
.
Sou eu, poeta precário,
que fez de Fulana um mito,
nutrido-me de Petrarca,
Ronsard, Camões e Capim;
.
que a sei embebida em leite,
carne, tomate, ginástica,
e lhe colo metafísicas,
enigmas, causas primeiras.
.
Mas, se tentasse construir
outra Fulana que não
essa de burguês sorriso
e tão burro esplendor?
.
Mudo-lhe o nome: recorto-lhe
um traje de transparência;
já perde a carência humana;
e bato-a; de tirar sangue.
.
E lhe dou todas as faces
de meu sonho que especula;
e abolimos a cidade
já sem peso e nitidez.
.
E vadeamos a ciência,
mar de hipóteses. A lua
fica sendo nosso esquema
de um território mais justo.
.
E colocamos os dados
de um mundo sem classe e imposto;
e nesse mundo instalamos
os nossos irmãos vingados:
.
E nessa fase gloriosa,
de contradições extintas,
eu e Fulana abrasados,
queremos...que mais queremos?
.
E digo a Fulana: Amiga,
afinal nos compreendemos.
Já não sofro, já não brilhas,
mas somos a mesma coisa.
.
(Uma coisa tão diversa
da que pensava que fôssemos.)

** Poeta Carlos Drummond de Andrade **
.

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