Houve um tempo em que o hoje lendário Ruy Barata comandava – em carne, osso e cuba libre –, no Bar do Parque, a mesa de cantores, poetas, intelectuais e bebuns em geral, e desafinava o coro dos contentes com sua língua afiada no verso mordente, pauapixuna.
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A mão direita em forma de concha sob o queixo, o eterno cigarro pendendo entre os dedos fura-bolos e o pai-de-todos, o Velho Ruy (nossa versão do Velho Graça) pedia pressa na dose, ao que o Sérgio, o garçom com bigode-cantinflas de cantante mexicano (ou guatemalteco), respondia que estava passando na manteiga – o pedido da cuba, que fique explícito.
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O poeta recepcionava os amigos com efusividade barroca (ou maneirista, já não lembro bem), mas não era incomum, ao fim da noitada, despachá-los ao diabo, ou ao bispo, conforme o gosto do cristão atirado à arena do Coliseu.
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Companheiro, pagava bebida aos desprovidos. Lá pelas tantas, amparado nos braços de musa grega com sotaque papa-chibé, embarcava num táxi e sumia na noite deste país chamado Pará, rumo a violões e outros cantos. Não se dava ao trabalho de pedir a soma da despesa. Very Important Person, tinha nome cativo no caderno de penduras da casa. (Meu nome, desconfio, continua por lá, a essa altura já nem pendurado, mas enforcado.)
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Uma vez perguntei ao Sérgio qual o cliente mais famoso que lhe passou pela bandeja. Ele não hesitou: o Ruy Barata. “Olha, ele era uma ótima pessoa, mas depois que colocava a mão no queixo, olhava de banda e começava a te tratar de irmãozinho, aí o esquema já mudava.”
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Entre as impagáveis do Ruy, nem sempre publicáveis, Sérgio recorda da ocasião em que uma das chamadas profissionais do sexo (que fizeram do Bar do Parque o seu, digamos, local de trabalho) chegou ao quiosque (o Bar do Parque para os íntimos) acompanhada do filho de poucos anos de idade. O poeta piscou para o garçom e carimbou, ao melhor estilo cartorário: “Este que é o verdadeiro filho da (....)”. Elementar, caro leitor.
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Noutra mesa do bar, Vicente Cecim delirava entre seus personagens de Andara. Mas, às vezes, encarnava a mão direita do sargento Nazareno, a que mata, e partia, pontiagudo, em assassino atletismo etílico, no encalço de um aditivado amigo jornalista e fiel adversário mallarmaico, de nietzschianos bigodes.
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Mais adiante, nas asas da levitação, o monge Max Martins pairava além do bem e do mal, sonhando com os caminhos de Marahu, enquanto dardejava, na mesa, o I Ching.
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No balcão do quiosque (repetindo, como o Bar do Parque também é chamado, neste acaso, tomando-se a parte pelo todo), o deputado Célio Sampaio confraternizava cafezinhos com os ex-colegas taxistas.
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Alta madrugada, feito um cavaleiro aprumado em seu ajaezado corcel, o playboy Alfredo Gantuss Filho, o Fredoca, avançava pela calçada, por entre as mesas, despejando decibéis de suas tuítas, inundando o entorno de Mike Oldfield e Jean-Michel Jarre, para o desbunde de sua corte e o protesto indignado dos que só queriam levar um papo-cabeça, sem trilha sonora. Os que tinham sede, no entanto, deixavam de lado a birra com o nosso Scarpa no tucupi, para compartilhar da vinícola ambulante do baronete.
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E até os chatos daquela época eram mais toleráveis. Faziam seu discurso pinel e, feito aplauso, colhiam no copo o bota-fora da freguesia, a cerveja consagrada. E se houve uma época em que os cuidados maternos se encrespavam à idéia de suas filhas se amasiarem com um rolling stone, período houve em que as moças comportadas faziam ohs! indignados à menção de tomar umas no Bar do Parque.
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Tinham lá suas pudicícias razões. Naquelas rodinhas dionisíacas, fomentadas a charos e chundas, muito se banqueteou, entre um caldo verde e outro. Mas daquela era de bravos, hiperbólicos e lítero-bêbados se forjou, entre sopapos e papos, a fama de boemia intelectual do Bar do Parque. E hoje, de que louros e louras geladas sobrevive o Bar do Parque?
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Bem, neste nosso livro da boemia belenense, o capítulo dedicado ao Bar do Parque tem de ser mais chorado (feito uma dose), por isso continuo amanhã – se os deuses da boemia assim permitirem.
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