sexta-feira, 4 de abril de 2008

Grande Noel - Elias Pinto



Estive por esses dias escutando a caixa com os 14 CDs da coleção idealizada e produzida por Omar Jubran que contém todas, literalmente todas, as primeiras gravações das músicas que Noel Rosa (1910-1937) fez em seus breves seis anos de atividade. São 229 gravações de Noel em suas versões originais.
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O lançamento não é de agora – muito pelo contrário. Saiu em 2000, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, pelo Ministério da Cultura/Funarte. Há muito tempo que eu não ouvia os discos, pelo menos há mais de quatro, cinco anos. Pois a audição por esses dias me soprou o que eu já sabia: os melhores versos da nossa lírica popular são encontrados facilmente no coloquialismo melódico do rapaz de Vila Isabel.
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E não preciso listar nomes para lembrar a qualidade do nosso cancioneiro, que vai de Sinhô, Lupicínio Rodrigues, Orestes Barbosa e passa por Dorival Caymmi, Ari Barroso, Lamartine Babo, Vinicius de Moraes, Chico Buarque.
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Mas Noel é Noel. Humor e lirismo. “Até amanhã, se Deus quiser,/ se não chover, eu volto/ pra te ver, oh mulher./ De ti, gosto mais que outra qualquer,/ não vou por gosto,/ o destino é quem quer”. Trilha sonora perfeita para embalar os torós deste abril, nossa umidade latejante.
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Dizia-se, aliás, que o historiador Sérgio Buarque de Holanda, pai de Chico, era capaz de cantar Noel a noite inteira. Daí a filiação de Chico ao poeta da Vila. “Você me pediu cem mil-réis/ pra comprar um soirée/ e um tamborim./ O organdi anda barato pra cachorro/ e um gato lá no morro/ não é tão caro assim.”
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E este abre-alas para Freud na roda de samba, Nelson Rodrigues avant la lettre: “O maior castigo que eu te dou/ é não te bater/ pois sei que gostas de apanhar”.
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O lirismo dos amantes teria de ser revisto e reescrito depois de versos como estes: “Às pessoas que eu detesto/ diga sempre que eu não presto”. Ou: “Voltaste novamente pro subúrbio,/ vai haver muito distúrbio,/ vai fechar o botequim;/ voltaste, o despeito te acompanha/ e te guia na campanha/ que tu fazes contra mim”.
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Como escreve João Máximo, o melhor biógrafo de Noel (em parceria com Carlos Didier): “Noel Rosa pode não ter sido o melhor compositor popular de seu tempo, mas foi decerto o mais importante. Nele, ou em sua obra, estão mais marcadas do que nas de qualquer outro as transformações profundas pelas quais a música brasileira passou ao longo dos anos 30.(...) Na letra, ao substituir a poesia pernóstica, preciosística, dos seresteiros românticos dos tempos de Catulo da Paixão Cearense, por versos que alguns estudiosos associam à Semana de Arte Moderna. Exageros à parte, Noel Rosa simboliza as duas transformações, na música e na letra”.
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E ainda: “Noel foi o grande inovador de nossa lírica, o primeiro a mostrar que tudo (fome, miséria, mentira, futebol, jogo do bicho, assassinato, roubo, prostituição, homossexualismo, bebida, política, corrupção) podia ser convertido em letra de música. Com ele, as donzelas de sorriso de pérola e cabelos de seda davam lugar à mulher comum, pobre como a operária de fábrica de tecidos ou ardilosa como a dama do cabaré”.
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A coleção com os 14 CDs traz tudo o que Noel gravou com a própria voz (ele só levou ao disco música sua). Além dos grandes intérpretes que transitaram por suas canções, como Mário Reis e Francisco Alves, Sílvio Caldas e Aracy de Almeida, Ari Barroso e Lamartine Babo, Pixinguinha e os Diabos do Céu, entre outros. Ah, e Carmen Miranda, de quem Noel não gostava – para ele, podia ser a rainha das marchinhas, mas não do samba.
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(Ele foi o primeiro a mostrar que miséria, jogo do bicho, prostituição, homossexualismo, bebida, política, corrupção, tudo podia ser convertido em letra de música)
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