segunda-feira, 23 de março de 2009

Os meninos


(...) Afinal os meninos sempre nasceram, e inclusive isso é a primeira coisa que costumam fazer: aparentemente essa história é muito antiga, e talvez monótona. Mas estamos solenes. As mães olham os que nasceram. Os pais tomam conhaque e providências. O mundo continua.
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O que talvez nos pertuba um pouco é esse sentimento da continuação do mundo. Esses pequeninos e vagos animais sonolentos que ainda não exergam, não ouvem, não sabem de nada, e quase apenas dormem, cansados do longo trabalho de nascer - ali está o mundo continuando, insistindo na sua peleja e no seu gesto monótono.
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Nós todos, os homens, lhes daremos nosso recado; eles aprenderão que o céu é azul e as árvores são verdes, que o fogo queima, a água afoga, o automóvel mata, as mulheres são misteriosas e os gaturamos gostam de frutas.
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Nós lhe ensinaremos muitas coisas, das quais muitas erradas e outras que eles mais tarde verificarão não ter a menor importância.
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Este lhes falará de Deus e santos; aquele, da conveniência geral de andar limpo, ceder o lado direito à dama e responder cartas. Temos um baú imenso, cheio de noções e abusões, que despejaremos sobre as suas cabeças. E com esses trapos de idéias e lendas se cobrirão, se enfeitarão, lutarão entre si, se rasgarão, se deprezarão e se amarão.
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Escondidas nas dobras de bandeiras e flâmulas, nós lhe transmitiremos, discretamente, nossas perplexidades e nosso amor ao vício; a lembrança de que todavia não convém deixar de ser feroz; de que o homem é o lobo do homem, a mulher é o descanso do guerreiro; frases, milhões de frases, o espetáculo começa quando você chega, um beijo na face pede-se e dá-se, se quiser ofereça a outra face, se o guerreiro descansa a mulher quer movimento, os lobos vivem em sociedades de alcatéias, os peixes em cardume, desculpa de amarelo é friagem e desgraça pouca é bobagem.
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Armados de tão maravilhosos instrumentos eles empinarão seus papagaios, trocarão suas canelas, distribuirão seus orçamentos, amarão suas mulheres, terão vontade de mandar, de matar e, de vez em quando, como nos acontece a todos, de sossegar, morrer.
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*Rubem Braga > "200 crônicas escolhidas" > Editora Record.

2 comentários:

* Patty Meirelles * disse...

Olá querido amigo!! Como vai?

Dediquei alguns selinhos aos amigos. Estão postados na minha galeria de selos.

Se ainda não pegou, fique a vontade e pegue assim q puder.

Bjs no coração e uma abençoada semana

jac rizzo disse...

Ronaldo, eu gosto muito do Rubem
Braga!! Suas crônicas são de um lirismo imenso!

Encontro sempre alguma coisa que gosto,
por aqui!

Meu carinho.