sexta-feira, 11 de abril de 2008

O medo

Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador,soldado.
Nosso destino, incompleto.
.
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.
.
Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
doenças galopantes, fomes.
.
Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em S.Paulo.
.
Fazia frio em S.Paulo...
Nevava
o medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.
.
Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno.
De nós, de vós; e de tudo.
Estou com medo da honra.
.
Assim nos criam burgueses.
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?
.
Vem harmonia do medo
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas
.
do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.
.
Fazemos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.
.
E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.
.
O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores.
Este poema; outras vidas.
.
Tenhamos o maior pavor.
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.
.
Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,
.
eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.

* Carlos Drummond de Andrade

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