segunda-feira, 22 de junho de 2009

O diploma morreu. Viva o jornalismo > Elias Ribeiro Pinto

Cláudio Weber Abramo, morto em 1987, foi um dos maiores jornalistas do Brasil. Começou na profissão relativamente tarde (para a época), aos 25 anos, em 1948, no jornal O Estado de S.Paulo (eu, por exemplo, assinei meus primeiros textos aos 15 anos, em 1975, no alternativo Bandeira 3 e em A Província do Pará), indicado por Lívio Xavier, um finíssimo intelectual dublê de jornalista, de quem tenho duas preciosidades: seu livro O Elmo de Mambrino e sua tradução e introdução de O Príncipe, de Maquiavel.
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O fato de ter iniciado tarde não o impediu de ter sido responsável pela modernização do Estadão e da Folha de S.Paulo, além de formador de gerações de profissionais.
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Falando cinco línguas, escrevendo em português e inglês, Cláudio Abramo fez o curso primário e os cursos de madureza do ginásio e do colégio, estes depois de maduro. Jamais entrou na universidade, a não ser mais tarde, convidado para dar aula.

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Secretário do Estadão na década de 1950, começou a cooptar universitários para o jornalismo, mandando buscar alunos que se destacavam nos cursos de filosofia, ciências sociais, matemática, física. Um deles foi Vladimir Herzog.

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Esta é a verdadeira face do humanista. Sem diploma, autodidata, talentoso, muito acima da média de seus colegas, Abramo abre espaço para quem se forma, estuda, aprimora-se, sempre. Fosse o contrário, e o STF tivesse acatado a exigência do diploma, os sindicatos, sob o comando de ordem e açoite da Fenaj, já teriam iniciado a caça às bruxas, promovendo arrastões nas redações, salivando.

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A decisão do STF, de negar a exigência do diploma, vai fazer um bem danado para o jornalismo. Os cursos de comunicação, depois do refluxo e da maré vazante que evidenciarão seus muito conhecidos males, tenderão a melhorar, fertilizando-se, tutanizando-se.

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Hoje, a maioria dos professores e coordenadores desses cursos, atirados numa redação, tremeria. Burocrata do ensino, a maioria. Chupins. O mesmo vale para a maioria dos jornalistas, “de carteirinha”, abrigada sob a marquise corporativista da Fenaj, da ABI e dos sindicatos. Quando pisam numa redação, é para brigar pelos “direitos” da categoria. No entanto, com diploma e o escambau, onde o avanço, as “conquistas”?
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No caso do Pará, as conquistas mais significativas para a categoria ocorreram durante as presidências de Lúcio Flávio Pinto e Raimundo José Pinto, dois jornalistas, por coincidência, sem diploma de comunicação social.
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Sou a favor do diploma – não de sua obrigatoriedade. Sou a favor do jornalismo – não de seu “cartorialismo”, de seu corporativismo. Sou a favor das escolas de jornalismo, não de seu jubiloso parasitismo.

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Muitos blogs e muitos jornalistas, entocados em assessorias, dizem que os jornais de Belém são “uma bosta”, “uma porcaria”. Bosta ou porcaria, com seus defeitos e vícios, são jornais.
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Quase sempre estive no front jornalístico, à vista de todos, auditado, sempre, pelo leitor, tentando dar minha contribuição, buscando avanços entre tantos recuos. Por incrível que pareça, há jornalismo nos jornalões.
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Citando apenas um entre tantos exemplos, durante exatos dois anos assinei reportagens de página dupla aqui no DIÁRIO, no primeiro caderno, de 1999 a 2001. Eu próprio me pautava. Foi uma fase difícil, cansativa, tensa, de madrugadas insones. Eu tinha, em geral, apenas um interlocutor na definição dessas reportagens.
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A direção do jornal dessas matérias só tomava conhecimento quando eu as trazia para enfim fechá-las na redação. Algumas vezes, a reportagem trazia incômodos, desafiava alguns “tabus”. Eu a concluía, punha-lhe o guizo e deixava para ser impressa. Jamais fui censurado.
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Tenho orgulho desse meu período, antes e agora, no DIÁRIO. Gosto de trabalhar no DIÁRIO, onde já estou há quase 15 anos. Como tenho orgulho de ter trabalhado no Bandeira 3, n’ A Província do Pará. E também na revista Amazônia Hoje.
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Dirigida, à época, por um membro da UDR, União Democrática Ruralista, consegui, numa entrevista, reunir setores da UDR, do governo e da academia. Entre os entrevistados, estava o insuspeito Jean Hébette, que até hoje reconhece que foi aquele um debate jornalisticamente democrático.
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É assim que se tenta fazer jornalismo, abrindo caminho por entre zonas de conflito.
Cláudio Abramo não publicou nenhum livro em vida. A Regra do Jogo, póstumo, foi lançado em 1988, montado a partir de depoimentos deixados pelo jornalista, tendo como complemento mais de uma centena e meia de entrevistas, artigos, reportagens e comentários publicados pelo autor.

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Não sei se o livro chegou a ser adotado ou é utilizado nos cursos de comunicação das universidades locais. Sei que a Companhia das Letras deveria reeditá-lo, em boa hora, nesta sua coleção de Jornalismo Literário.
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É deste livro, A Regra do Jogo, que selecionei, intitulando-os, os trechos a seguir. Nem sempre concordo com Cláudio Abramo, mas acho que suas reflexões sobre o jornalismo, em boa parte, permanecem atuais, preciosas e necessárias para este momento de reconstrução profissional. Ler e saber escrever continuam a ser os pilares da sabedoria dessa missão.

O JORNALISTA PRECISA LER MUITO
O jornalista só é bom se formado desde cedo. A juventude é a fase mais bonita da vida da gente, é quando se começa a engolir as coisas, a aprender. Rimbaud, por exemplo, produziu seus melhores poemas aos dezesseis anos e já tinha tido uma vida intensíssima – depois foi ser contrabandista de armas na Etiópia, na guerra do Menelick. Mas hoje o jovem excepcionalmente inteligente não vai perder tempo em jornal: ele vai ganhar dinheiro, jogar na Bolsa, mexer em computador.

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De minha parte, comecei a aprender o Brasil muito tarde, porque minha formação foi muito internacionalista, mas não cosmopolita. Quem me marcou muito como escritor foi André Malraux, que exerceu uma enorme influência na maneira como eu escrevia antigamente. Também li muito Jack London. Acho que o jornalista deve ler Shakespeare, que é indispensável. No lugar de ler vários tratados de psicologia, em Shakespeare aprende-se toda a psicologia humana.

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Quando vem a sensação de que se está perdendo muito das ideias que se quer colocar no papel, então é preciso trabalhar mais o idioma e exercitar a leitura. O jornalista precisa ler muito, ler literatura, porque a literatura nos põe em contato com o universo comum dos homens. E também é preciso ler poesia.

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O grande escritor é universal, e através dele entramos em contato com os problemas do mundo e do ser humano. Toda referência do homem é o ser humano, toda cultura, tudo diz respeito ao ser humano, e não há outra referência mais importante do que essa. E a literatura é o caminho para isso.

O REPÓRTER
Para ser jornalista é preciso ter uma formação cultural sólida, científica ou humanística. Mas as escolas são precárias. Como dar um curso sobre algo que nem eu consigo definir direito?

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Trabalhei quarenta anos em jornal e acho muito difícil definir o que meia dúzia de atrevidos em Brasília definem como curso de jornalismo. Foi o que fez o patife do Gama e Silva [ministro da Justiça do governo Costa e Silva], que elaborou a lei para tirar os comunistas dos jornais.
Em seu trabalho, o repórter sempre vai ver coisas diferentes na sua essência e no seu aspecto externo.

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Um repórter vai fazer matérias políticas, ou vai descrever uma enchente, um desastre; vai ver o drama de uma família, tratar de um problema coletivo ou entrevistar um ministro. Por isso ele precisa ter muita flexibilidade na maneira de se exprimir, e para isso deve também ter um domínio maior da língua.
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E também é importante que saiba escolher as palavras exatas para determinadas ocasiões. Uma crônica de Rubem Braga sobre o sabiá é leve; já seus textos como correspondente de guerra são muito mais densos. Cada situação tem seu próprio pathos e é preciso transmitir aquilo para o leitor. Por isso o jornalista tem que ler muito, sempre.
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É preciso ler Dante, Camões, Homero e Heródoto, Faulkner, Mark Twain, Scott Fitzgerald, Proust. André Gide só um pouquinho, porque é muito deletério. E George Orwell, não pelas coisas que diz, mas pela sua inteligência, pelo uso da língua e pela maneira independente de raciocínio, embora no fundo seja muito conservador. É preciso ler os libertários americanos, Walt Whitman e Emerson, e Paul Goodman.

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Dos brasileiros não sei bem. É preciso ler Florestan Fernandes. De Guimarães Rosa tenho horror; gosto dos contos, mas como romancista é muito complicado. Aquilo é charada alemã. Talvez as pessoas devam ler Guimarães, mas não eu. Prefiro Érico Veríssimo, que é um escritor menor mas está mais ligado à realidade brasileira.

O LIXO DA HISTÓRIA
Quando eu era menino ainda havia aqueles velhos anarquistas – agora só existem anarquistas anticomunistas, esses não servem. É preciso conversar com alguns anarquistas para guardar a liberdade de pensar livremente, porque são todas pessoas não conformistas, que não se dobram.

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Mas, por outro lado, deve se ter moderação ao ler Adorno, Benjamin, escola de Frankfurt, que é tudo lixo; é interessante, mas não deve substituir o outro conhecimento, a outra cultura, isto é, não se pode colocá-los no lugar de tudo. É preciso também fugir da semiologia, da semiótica, de Lévi-Strauss: isso tudo é o lixo da história, isso a história vai deixar como os índios deixaram o bispo Sardinha.
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CURSO DE JORNALISMO
O jornalista deve ter uma formação cultural sólida e tem que saber muito bem algumas coisas. Ele deve saber história, saber como funciona seu país, a máquina do país, as relações na sociedade.

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A menos que uma escola de comunicações ofereça um curso de história completo, é preciso ter conhecimentos elementares, que teoricamente deveriam ser aprendidos no ginásio. O jornalista tem ainda que conhecer bem a língua, para saber manejá-la com a proficiência necessária. Como um curso de jornalismo vai dar tudo isso?
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Os cursos dão muitas coisas que, no fundo, são apenas noções. Por isso, o jornalista ficou com a fama de ser um especialista em generalidades. A meu ver o curso de jornalismo deveria ser um curso de pós-graduação. O ideal seria ter nas redações economistas, sociólogos ou médicos que, além do curso específico, tivessem uma pós-graduação em jornalismo e aprendessem como comentar as coisas e escrever com clareza.

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MELHOR LER UM BOM ROMANCE
É uma ironia que eu, Janio de Freitas, Mino Carta, Alberto Dines, Washington Novaes e outros não estejamos dando aulas na universidade. Quem dá aulas são veterinários ou biólogos, porque é preciso ter títulos universitários.

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Por isso as escolas de jornalismo começaram mal, com a marca e o carimbo do regime autoritário que colocou gente medíocre lá dentro. Sei que há gente boa dando aula. Mas a regra geral é a do professor que está ali apenas para fazer carrière universitária. Na verdade, a escola deveria ter aberto a carreira para jornalistas feitos, o que teria dado um outro viés aos cursos de jornalismo.
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Não sei o que se ensina hoje nas escolas. Há muitos anos, dois amigos conseguiram entrar como professores no curso de jornalismo da Fundação Cásper Líbero, em São Paulo, e me chamaram para dar aulas de editoração. Ao chegar, disse não saber o que queria dizer editoração. Eles recorreram então a um manual, feito por Abgar Renault, que por sua vez também não esclarecia nada. “Editoração quer dizer edição”, eu dizia. “Mas edição no sentido português ou no sentido anglo-saxônico?” Eles não sabiam. Então decidi dar o que quisesse.

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Deixei de dar aulas porque os alunos começaram a ficar muito impacientes por eu não recomendar livros para eles lerem (...) Eu via aqueles pobres rapazes e moças tomando notas e comprando livros, às vezes reunindo-se em três ou quatro para comprar um livro de um autor alemão ou italiano.

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Disse a eles que economizassem o dinheiro e devolvessem tudo para a livraria; disse que era melhor ler um bom romance, ler Flaubert, ler as obras completas de Shakespeare devagarinho, ler Os Lusíadas; pelo menos aprenderiam a usar bem a língua. Para mim isso seria melhor do que aquela teorização imbecil, mal traduzida ou traduzida porcamente por pessoas mal pagas (...)

A PROFISSÃO
O argumento usado na campanha contra o diploma de jornalismo e contra a regulamentação profissional peca pela base, porque parte do princípio de que as escolas são ruins. Em parte isso é verdade, mas os jornais e as empresas têm de lutar para que os cursos de jornalismo melhorem, têm de exigir que os professores sejam mais eficientes e examinados por bancas compostas por jornalistas competentes.

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É assim que se faz. Concentrando-se uma massa de bons professores, consegue-se fazer uma boa escola. Por outro lado, sou um grande jornalista, e por isso posso dizer quem pode e quem não pode exercer a profissão. Pode-se julgar que isso é arbitrário, mas é melhor eu achar do que se decidir a questão pela média das notas de cinco professores. Jornalismo é uma profissão autoritária.
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Sou contra a extinção dos cursos de jornalismo porque seu fim não vai resolver muito. E também sou contra a suspensão da regulamentação profissional, porque isso representa uma tentativa de se quebrar de vez o poder de luta dos jornalistas como categoria profissional.

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Sempre fui um dos primeiros críticos da escola de jornalismo, mas agora vejo tanta gente mobilizada contra ela que acabo desconfiando. Tudo isso tem a finalidade de tirar o último elo da espinha dorsal, já bastante flexível, do jornalista. Minha posição hoje é de defesa da escola, embora reconheça que ela seja precária. Isso precisa ser muito bem analisado pelos próprios jornalistas e pelo seu sindicato, que, aliás, tem uma atitude muito pouco positiva nesse assunto, porque não examina a questão em profundidade.
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4 comentários:

Unknown disse...

Prezado Ronaldo:

Parabéns pelo texto. Agradeço a lembrança de meu pai.

Gostaria apenas de apontar um equívoco e solicitar a retificação correspondente. Na primeira linha, você menciona o meu nome (Claudio Weber Abramo) e não o do meu pai (Claudio Abramo).

Atenciosamente,

CLaudio Weber Abramo

Elias Ribeiro Pinto disse...

Prezado Claudio:
Fui eu que escrevi o texto, publicado no jornal Diário do Pará, no domingo. Sei que o nome de seu pai é Cláudio Abramo, e também lhe conheço (de leitura e do seu trabalho como diretor executivo da Transparência Brasil). E por isso, como havia assistido, dias atrás, uma entrevista sua na Globo News, acabei, na primeira linha, movido pela lembrança recente do programa assistido, incluindo, indevidamente, o seu Weber ao nome de seu pai -, e você foi um dos organizadores do livro. Agradeço-lhe a correção e a gentileza da leitura do texto.
Cordialmente,
Elias Ribeiro Pinto

Anônimo disse...

Seu blog,caro poeta, hoje é o mais lido de Belém.
E com bons motivos : seleção de textos inteligentes, seus poemas, suas ilustrações e poemas de Max.

Parabéns.Eurico Castro

Oservação: Seu blog é comentário geral em vários setores de nossa sociedade.

Anônimo disse...

Seu blog cada vez melhor.

Hélio França Medeiros