quarta-feira, 21 de abril de 2010


É Preciso Fazer Alguma Coisa :poema de Thiago de Mello.


Escrevo esta canção porque é preciso.
Se não a escrevo, falho com o pacto
que tenho abertamente com a vida.
E é preciso fazer alguma coisa
para ajudar o homem.

Mas agora.

Cada vez mais sozinho e mais feroz,
a ternura extraviada de si mesma,
o homem está perdido em seu caminho.

É preciso fazer alguma coisa
para ajudá-lo. Ainda é tempo.

É tempo.

Apesar do próprio homem, ainda é tempo.
Apesar dessa crosta que cultivas
com amianto e medo, ainda é tempo.

Apesar da reserva delicada
das toneladas cegas mas perfeitas
de TNT pousando sobre o centro
de cada coração - ainda é tempo.

No Brasil, lá na Angola, na Alemanha,
na ladeira mais triste da Bolívia,
nessa poeira que embaça a tua sombra,
na janela fechada, no mar alto;
no próximo Oriente e no Distante,
na nova madrugada lusitana
e na avenida mais iluminada de New York.
No Cuzco desolado
e nas centrais atômicas atônitas,
em teu quarto e nas naves espaciais
- é preciso ajudá-lo.

Nas esquinas
onde se perde o amor publicamente,
nas cantigas guardadas no porão,
nas palavras escritas com acrílico,
quando fazes o amor para ti mesmo.

Na floresta amazônica, nas margens do Sena,
e nos dois lados deste muro
que atravessa a esperança da cidade
onde encontrei o amor
- o homem está ficando seco
um sapo seco
e a sua casa já se transformou
em apenas local de seu refúgio.

Lá na Alameda de Bernardo O´Higgins
e no sangue chileno que escorria
dos corpos dos obreiros fuzilados,
levados para a fossa em caminhões
pela ferocidade que aos domingos
sabe se ajoelhar e cantar salmos.

Lá na terra marcada como um boi
pela brasa voraz do latifúndio.

Dentro do riso torto que disfarça
a amargura da tua indiferença,
na mágica eletrônica dourada,
no milagre que acende altos-fornos,
no desamor das mãos, das tuas mãos,
no engano diário, pão de cada noite,
o homem agora está, o homem autômato,
servo soturno do seu próprio mundo,
como um menino cego, só e ferido,
dentro da multidão.

Ainda é tempo.
Sei porque canto: se raspas o fundo
do poço antigo de sua esperança,
acharás restos de água que apodrece.

É preciso fazer alguma coisa,
livrá-lo dessa sedução voraz
da engrenagem organizada e fria
que nos devora a todos a ternura,
a alegria de ser gente e de viver.

É preciso ajudar.

Porém primeiro,
é preciso ajudar-me, agora mesmo,
a ser capaz de amor, de ser um homem.

Eu que também me sei ferido e só,
mas que conheço esse animal sonoro
que profundo e feroz reina em meu peito.


(Alemanha, setembro, 1974)

.

***

Um comentário:

Benny Franklin disse...

Belo como o belo que reina na venta do novo dia.

Boa, RON!