sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

A segunda morte de Che - Poema de Pedro Galvão

Poeta Pedro Galvão


A segunda morte do Che

Pedro Galvão


Es un trámite morir.
Atribuído a Don Francisco
de Quevedo y Villegas

G


As rugas já não rasgam no seu rosto
as nervuras da morte. O nó da asma
já não mais o estrangula, nem desgosto,
nem diarréia, nem vômito ou fantasma
de dor, tortura e medo. O coração
jaz em paz
jaz em paz?
já se fez pó,
o cérebro está morto – o sonho, não –
nem cadáver mais resta, agora é só
ossos, mas ossos de um guerreiro, vivo
como jamás quisieran que estuviera.
Agora que está morto é mais esquivo,
além de toda bala e toda Higuera.
Resta o sonho a matar, resta esse mito,
um c, um h, um e, morto infinito.


U

“We must kill him. O, we gotta kill him
anywhere, elsewhere, everywhere.
Ô gunfighters do mundo, dai um fim
à tão sinistra luz, a luz esquer-
da que assombra e, sem medo, engatilhai
Macintoshes, mirai, usai o Windows
– ó épicos satélites, rastreai
o olhar campeador (o mais ruim dos)
e os passos que não passam –, com o florete
da palavra mais livre e seus repiques
em googles e youtubes, na internet,
por CNNs e times e newsweeks,
deletai as três letras que empeçonham
os sonhos desses loucos que ainda sonham.”

E

“Matai, matai o morto que não morre
e está no céu
– no inferno? –,
está emboscado
nas tocaias da morte e à vida acorre
dando sangue ao terror, torvo legado.
Agora que está morto é mais difícil
matá-lo. Ele se esconde em mil obscuros
altares ou covis e sub-reptício
coleia em vossa mente, ei-lo intramuros
em vossa má-consciência, na obsessão
de vencer o vencido vencedor,
na pedra de rancor do coração.
Mas primeiro limpai todo rancor
de vossa alma. E matai esse herói torto,
matai o que não morre, morte ao morto.”

V


“É preciso matar sua coragem
até que reste apenas covardia.
É preciso matar o herói-miragem
até que reste apenas vilania.
É preciso matar sua beleza
até que reste apenas sua feiúra.
E até que reste apenas sua frieza
é preciso matar sua ternura.
É preciso matar sua piedade,
é preciso matar-lhe o aroma e a flor,
até que reste apenas crueldade,
até que reste apenas seu fedor.
É preciso matar sua memória
até que reste apenas sua escória.”

A

“¿Qué sé yo de la muerte? No sé nada.
De la vida sabré tal vez un poco,
de hambre y hombres, de lucha apasionada.
De morir sí, lo sé, tránsito loco
entre dos tiros, dos tinieblas, dos
punzones en el pecho sin dolor,
o entre vida y no vida, no más, los
ojos como entornados y el rigor
final de los juicios que te alaban
o te destruyen. Y os diré: morir
es solo un trámite, todos se acaban
aunque paguen el precio de vivir
por la causa del Hombre o, así lo quieras,
del odio, sus pasiones, sus banderas.”

R

Nas revistas, refém, o ressuscitam
para matá-lo enfim completamente.
Mas como se, nas fotos que nos fitam
com dureza ou ternura, o olhar não mente?
Nesta foto de Korda, o camarada:
olhar campeador, encara o tempo
e conduz sua bandeira estraçalhada
na luta mais feroz, sonho irredempto.
Matar como, esse olhar, se frente à morte,
se até na última foto do Che vivo,
não há ódio nem medo ao cão e à sorte,
mas só o olhar humano, compassivo
– frente à metralhadora e ao assassino –,
de quem sabe que a morte é seu destino?

A

Ei-lo vivo na morte, Cid ou Che,
conduzindo a bandeira, não na aurora
mas sozinho na noite, sem mercê:
um homem, sua coragem, tempo afora.
Nenhum deus há no céu a defendê-lo
na luta além da morte, só a memória
e o peito de homens justos, só o desvelo
de guardar a grandeza de sua história.
Chegai, chegai, reuni vossa brigada
e resgatai sua áspera ternura,
até que nasça outro hombre em nossa estrada,
otro hombre raro y rico de aventura.
Na luta contra o algoz, quem o socorre?
Salvai, salvai o morto que não morre.
.
***

2 comentários:

Anônimo disse...

Belíssimo Poema!

Heitor Sanchez (São Paulo)

Anônimo disse...

Esse poema é daqueles bem trabalhados.

Edir Santana.