quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Da página literária (Diário do Pará) de Elias Pinto

Foto: Max Martins ( de boné) com amigos

O blog abre espaço para a publicação de um diálogo com o poeta Max Martins. Parte da transcrição (que se mantinha até então inédita) do encontro, organizada pelo jornalista e pesquisador Oswaldo Coimbra, segue abaixo.

No embalo de Max Martins

Oswaldo Coimbra


Todos naquela sala tínhamos em alta conta as habilidades exigidas pela produção de um texto. Éramos jornalista e alunos do curso de Letras da UFPA postados, naquele ano de 2000, diante de Max Martins, a quem considerávamos credenciado para a demonstração definitiva de que o ofício de produtor de textos mobiliza a totalidade da vida de quem o exerce. Estávamos no Núcleo de Artes, na Praça da República, e nosso herói e guru mostrava em sua aparência e em sua fala as sequelas dos males físicos que recentemente o haviam atingido. Nossa missão era a de ouvi-lo sobre o que ele próprio dissera à outra turma de Letras – uma de mestrandos – sete anos antes, em 1993, a respeito de seus poemas. Uma missão metalinguística na qual esperávamos vê-lo produzir um texto oral sobre aquele outro texto oral seu, agora transcrito diante de nós.
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Uma missão delicada, pois levaria à comparação entre dois momentos da sua capacidade de criar textos, separados por doenças físicas. Temíamos um fracasso e o constrangimento que sentiríamos diante dele. Max, porém, nada temia, como ficou claro já na sua primeira manifestação. Embora, com grandes pausas, perdas frequentes de linha de raciocínio, frases incompletas a exigir reedição, ele manteve-se altivo, bem-humorado, diríamos, feliz. Até mesmo quando constatava que o depoimento dado sete anos antes era mais brilhante. Em vários momentos falou da morte. Mas a impressão que nos deixou era ainda a de quem estava em completa harmonia com a grave opção de tudo sacrificar a fim de poder tentar escrever o melhor texto do mundo, a que ele se referiu, num certo momento. E por isto ficamos gratos a ele, infinitamente.
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Gratos pela demonstração de que por mais insensato que pareça apostar toda a vida na criação artística numa região que maltrata tanto seus filhos generosamente criativos, ele encontrou na sua opção um tipo de liberdade invejável, admirável por quem encare com um mínimo de profundidade a grande aventura da existência humana. Aqui, a primeira parte daquele nosso encontro com Max Martins.

Max, nós gravamos a conversa que você teve conosco – professor e alunos do mestrado de Letras da UFPA –, há sete anos, durante a qual você fez longas e demoradas reflexões sobre a poesia, que gostaríamos de apresentar agora a você, imaginando que não necessitarão de grandes correções da sua parte.
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Eu posso falar porque, afinal, são setenta e quatro anos de vida e tive tempo de meditar sobre a minha poesia. Então, eu repetirei o que disse, embora já se tenham passado sete anos desde aquela conversa. Vocês encontrarão a minha boca torta, a língua meio enrolada, portanto, diferente daquele tempo, mas creio que teremos sucesso ao falarmos de poesia.
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Gostaríamos, inicialmente, de recuperar um momento importante daquela conversa, quando, ao se abordar o tema “Texto e Vida”, você estabeleceu uma relação entre a sua produção poética e a sua vida. Você disse que a poesia era uma opção de vida. “Em primeiro lugar, eu quis ser poeta.” Esta frase contém alguma coisa que não costumamos ouvir. Embora a figura do poeta, a de um homem sensível capaz de atrair o interesse das mulheres, dentro do clichê conhecido, encante muita gente, poucas pessoas colocam, de fato, a produção poética no centro de sua vida. Você disse ainda: “Mas eu sabia que isto poderia me custar muito. Perdi os dentes, perdi o bonde, perdi uma maneira de ganhar dinheiro, de vencer na vida. Me dediquei só à poesia. O resto eu transformei em calo seco para que não doesse tanto”.
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Gostei desta frase. Tomara que eu tenha agora a mesma inspiração daquela hora. A minha poesia tem uma relação muito veemente com a vida. É poesiavida, vidapoesia. Eu quero sentir nas palavras, nas frases que uso, nas rimas – se há rimas –, em tudo cheiro de sangue. Faço uma imagem Como não datilografo, escrevo só a mão, quero sentir meu sangue escorrendo nas minhas veias, passando para os dedos e para a minha mão que segura a caneta Bic, de tinta preta. Eu bebo a minha emoção no cotidiano. O meu ler a vida é relacionado às coisas mais simples, mais corriqueiras da vida que me incluem e eu transformo em poema.
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Não se compreende um artista preso em correntes, nem na chamada realidade do cotidiano, nem em religiões. Só se cria alguma coisa tendo liberdade. Acho que o poeta é um Deus – comparando-o metaforicamente – porque ele tem a liberdade de Deus ao criar, para inventar o seu poema. Porém, o poeta precisa também de humildade para enfrentar o desafio da folha em branco. Ao poeta, também, é necessário desejar, ter vontade, uma chama, para fazer o melhor poema do mundo. Ele deve tentar alcançar esta grandeza, embora possa nunca alcançá-la. Eu digo que escrevo pelo meu bem. Não escrevo sobre coisas já constituídas. A minha poesia é o império do vago. Tenho um diário com já perto de cem cadernos em que crio palavras a esmo, de onde pinço meus poemas. Pinço palavras sem o seu significado comum. A poesia também é um jogo com as palavras, com as idéias. É fruto de uma vagabundagem, de uma viagem que faço, sempre escrevendo numa prancheta, dentro de uma rede que eu chamo de minha nave caótica. Misturo sonhos, e, às vezes, não estou escrevendo nada, nem estou pensando no sentido filosófico da palavra. Estou apenas viajando no meu pensamento, na minha vagabundagem. Agora façam outra pergunta.
Vamos voltar para a rede. Quando pedimos, na conversa anterior, para falar de seu método de criação, você disse que “não existe chamamento, inspiração”.
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E explicou: “Diariamente, eu pego meu papel, o lápis e uma prancheta, e me embalo na rede”. Este embalo tem uma função no seu processo de criação?
Nós costumamos empregar a palavra embalo para designar dança. A poesia, como a dança, tem um ritmo. Nascido, porém, da respiração do poeta. Não é um ritmo melódico, nem rimado, embora um poema possa casualmente ter rima. Infelizmente, o meu pulmão está intoxicado pelo cigarro, mas o cigarro é muito importante para mim. Tenho a impressão que, pelo andar da minha vida, morrerei fumando. Fumar, hoje em dia, sofre repressão por uma mania de saúde que obriga as pessoas a serem belas, fortes e ter bons pulmões. Não aceito esta repressão e me enraiveço com as pessoas que me tolhem, inclusive na minha própria família. Tive de levantar ontem à noite da mesa onde estava jantando porque minha filha, que não mora na minha casa, também jantava e me disse: “Papai, você não podia fumar longe?” Ela é cardíaca e estava com razão, mas fiquei com raiva. Não disse nada. Me levantei e me tranquei no meu paraíso, aquele último quarto onde estão os meus livros, minha rede. E me embalei na rede e esqueci o incidente. Acho antipático este policiamento. Por que não reclamam dos carros em cima das calçadas? Das calçadas esburacadas? Do cocô de cachorro em cima das calçadas? Há muita coisa contra o que reclamar. Mas só se reclama do cigarro. Isto nasceu de uma mania de americano zeloso, preocupado em comer suas vitaminas. Por isto, por raiva, acho que morrerei fumando.
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Mas o embalo da rede fornece um ritmo?
Ah, sim. O embalo dá o ritmo que já está dentro do meu pulmão, na minha respiração e na minha aspiração – um ritmo docemente ondulatório.
Ainda com relação a seu método de criação, você disse que “poderia começar a escrever um poema com uma idéia ou com uma frase escrita a esmo, que depois seria trabalhada e reconvidada a entrar no salão do poema, eu poderia começar com uma frase escolhida num texto qualquer, ou, ainda, com uma outra frase poética”. Você tem várias possibilidades como ponto de partida?
No poema cabe tudo, qualquer palavra, signo, idéia. O poema pode ter alguma idéia e pode não ter. O ritmo se faz ao acaso. Vagamente. Imposto pelo meu respirar. Se eu já respiro pouco porque meu pulmão está ressentido, meu poema será capenga em seu pulmão, se podemos dizer assim. No poema cabe qualquer palavra contanto que tenha este ritmo natural. No final, ela vai se encaixando. Mas pode ser que as palavras não sejam entendidas imediatamente. As palavras podem ser sombrias, pedem sombras, adoram sombras porque escondem outras palavras. As coisas, aliás, existem escondidas nas outras coisas. Este é um mistério que nos atrai, esteticamente. Por esta razão digo que escrevo pelo meu bem, pela minha auto-satisfação. O que move tudo é o desejo. Não só amoroso, embora, no final, tudo redunde, recaia no desejo amoroso. Afinal, o amor é o principal da vida. E o poema busca nos ouvintes o caminho do amor. Amor que, neste caso, é doação. O poeta é um doador. Pode ser que a doação do poeta não ocorra no momento em que for lido pela primeira vez. Mas ainda que se passem cem anos surgirá o momento da identidade entre a poesia e a vida.
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