quinta-feira, 6 de novembro de 2008



Aventuras do leitor Elias Pinto
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Ando com saudade dos livros que não li – e de muitos dos que já li. Claro, uma vida, ainda que longa, é breve demais para conhecer mesmo que apenas uma seleção de obras-primas da literatura mundial. Nem que vivêssemos somente para ler.
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E nem sequer podemos nos vangloriar de termos lido tudo de determinado autor. No meu caso, como não sou acadêmico nem me pretendo especialista, o que me move é a paixão pela leitura, que desconhece fronteiras ou leituras obrigatórias, disciplinares.
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A obrigação que tenho, para o bem e para o mal, é ter de acompanhar os lançamentos que as editoras me enviam, na maioria das vezes, a meu pedido. Para o bem, é que sempre é um regalo receber novidades literárias. Para o mal, é que uma corrida contra o tempo. Mal atravesso uma noite, in-fólio, pirilampeando entre as páginas, e já me amanhecem outros livros exigindo leitura.
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E aí já vira uma espécie de quilometragem de livros lidos. Por isso, estabeleci quase uma regra: aberto um livro, iniciada a leitura, tenho de lê-lo de uma só batida, nem que isso me obrigue a galopar madrugadas insones. Isto não é saudável, não tentem repetir em casa.
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Daí esta saudade que às vezes me atocaia de livros lidos em outras épocas mais avarandadas. Por extensas no tempo e no espaço (e vocês já verão o porquê disso), algumas dessas leituras fincaram marcos em meu convívio à sombra da biblioteca e de seus habitantes.
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O Doutor Fausto, de Thomas Mann, por exemplo. Um livro reconhecidamente difícil. Pois o li alternadamente, entre a minha casa e um botequim do outro lado da rua, na Itororó, Pedreira. O boteco era de última (se estiver vivo, o seu Teixeira não vai gostar que lhe chamem o bar, que já fechou, de pé-sujíssimo), os cachaceiros gravitavam, como mariposas, em volta da minha mesa (a única do ambiente), e vez por outra intervinham, querendo saber o que eu lia tão concentrado, enquanto as cervejas iam brotando no entorno.
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Como era uma leitura de risco, minha mulher, à época (e sou-lhe grato por isso), encapou o volume, preservando-o do atrito com a farra faustiana. Devo confessar, também, que alguns trechos do magistral romance de Thomas Mann ainda hoje me surgem entre brumas amnésicas. Foi quando eu cheguei mais próximo de unir boemia e literatura.
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Já o ciclópico Ulisses, de James Joyce, foi uma leitura de suma doutoração. Fiando-me nos críticos e exegetas do autor irlandês, obriguei-me primeiro a ler a Odisséia, de Homero. Depois, uma penca de títulos que se propunham a decifrar os códigos do Ulisses e fornecer as chaves que lhe abririam os segredos narrativos. Fui à biografia do autor.
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Com tudo isso, eu sempre empacava, ia-me o fôlego lá pela página 200, 250, 300 (parece até música do Roberto Carlos ou aceleração de Fórmula 1; falando nisso, o nosso Felipe Massa saiu da corrida de domingo como um Fernando Gabeira das pistas, um derrotado vitorioso). Cheguei a comprar o original inglês, a tradução em espanhol e mais a versão francesa, que ficavam abertas na mesa, fazendo companhia à tradução do brasileiro Houaiss e mais a de uma versão lusitana.
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Eu endoidecia, obviamente. Lia cinco vezes a mesma página em várias línguas, comparando as soluções dos tradutores. Num livro de quase mil páginas, teria de ler cinco mil. Pirei sem conseguir terminar nem uma versão. (Talvez por isso a tradução de Houaiss me parecia, às vezes, a mais insondável.)
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Só consegui ler de uma vez o Ulisses quando me desvesti de todas as teorias e chaves para penetrar no livro munido somente de alegria, isso mesmo, com o mesmo prazer de quem se dá o gosto de caminhar pela primeira vez numa cidade desconhecida. Ao contrário do sacrifício (que representa para muita gente, como representava para mim) que essa leitura possa oferecer, aprendi a (re)ler Ulisses com o frescor que as obras-primas nos doam a cada aproximação.
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Outra leitura intelectualmente venturosa foi a de O Nome da Rosa, de Umberto Eco, que li tão logo saiu no Brasil. E até a de O Exorcista, de William Peter Blatty, que gerou o filme famoso e assombrou minha adolescência. Mas estas e outras aventuras literárias deixo para contar noutra ocasião, se não lhes encher o barril da paciência.
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