quarta-feira, 29 de outubro de 2008

"Amor"

Clarice Lispector
"Amor", conto incluído em Laços de Família:
"O vento batendo nas cortinas que ela mesmo cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício (...)
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Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções (...) Saía então para fazer compras (...) Quando voltasse era o fim de tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranquila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos (...)
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Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera (...) Ana subia no bonde (...) Foi então que olhou para o homem parado no ponto. (...) Era um cego. (...) Como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o (...) O mal estava feito. Por quê ? teria esquecido de que havia cegos ? A piedade a sufocava (...) Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas na rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão - e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir.
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Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram (...) Um cego (...) Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida (...) Enfim pôde localizar-se. (...) Atravessou os portões do Jardim Botânico. (...)
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E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada.(...) Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel.(...) No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos. (...)
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Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta (...).
A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele (...)
A decomposição era profunda, perfumada.
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